?Onde está a realidade; onde está a liberdade?

Lembro quando lia e mal entendia as complexas sagas e teorias sobre os universos dos quadrinhos; com o tempo, a industria dos quadrinhos sofreu uma reviravolta e os filmes passaram a ditar as histórias das revistas. No caso dos quadrinhos, a mudança de mídia não é importante, mas quando a saga em questão, é o desenvolvimento das relações humanas, uma mudança de “mídia” pode, e está se mostrando algo catastrófico. Tudo vem acompanhado com uma boa dose de individualismo e relativismo, tal fórmula age como um câncer cultural, refletindo tanto nas camadas superficiais, como nas mais profundas da alma humana.

O individualismo, é alimentado pelo relativismo, criando uma ruptura social através da destruição dos valores éticos, relacionamento hierárquicos e organizações sociais (…obrigado Nietzsche…😒). O impacto disso é uma potencialização do indivíduo, onde cada um é por si; “livres” para tomar suas decisões, bem como o direito de expressar, e exercer suas convicções e “verdades” particulares. Contudo, ignoramos o fato de que estas pessoas, quase sempre, não contam com uma estrutura psicológica para “viver suas próprias vidas de maneira totalmente autônomas” — creio que nenhum, ou bem poucos de nós contamos — somos criaturas sociais, tornando vital a organização e o estabelecimento de leis e padrões éticos.

A necessidade de convivência social do ser humano, entra em conflito direto com a tentadora liberdade integral do indivíduo, tornando o fato do mundo não girar em torno de mim mesmo algo terrível e cruel; o que antes era natural para os seres humanos, como as relações sociais, hoje se tornou uma batalha de status. O reflexo disso pode ser visto nas redes sociais, onde observamos uma corrida insana por reconhecimento; seja lá de quem, sobre, do que for. Essa é uma corrida sem regras, onde todos somos “Dick´s Vigarista”, onde vale tudo para se conseguir notoriedade, inclusive denegrir a própria imagem.

Estes relacionamentos líquidos — como diria Zygmunt Bauman — são movidos pelo comércio de bajulação, mascarando a solidão da tão sonhada e utópica autonomia, onde a felicidade se resume à quantidade de “likes” e seguidores, e as raramente sinceras emoções são expressas em “emoticons”.

O que é real, deixou de ser tão importante, tudo é relativo, e o relativo já não é tão ruim, desde que não seja uma negativa, a bajulação hipócrita, meias verdades ou inteiras mentiras, é uma coisa boa se me faz sentir bem comigo mesmo, é claro. O falso se torna “o meu real”, “o meu verdadeiro”, desde que meu eu seja alimentado por isso.

No mundo virtual, posso criar uma vitrine de mim mesmo, mostrar o que existe de melhor em mim (sendo verdadeiro ou falso), conseguir mais “likes”, mais “seguidores”, mais “views”; enquanto vou engolindo a seco meus defeitos, minhas manias, meus anseios, minha humanidade, minha identidade (ver o episódio “Queda livre” da terceira temporada da série Black Mirror).

O negligenciamento de quem somos, por uma representação virtual de quem queremos ser, causou um “boom” nas taxas de suicídio e depressão, bem como uma série de outras deficiências, não só com relação ao indivíduo, mas também na sociedade e cultura. Em seu livro “Suicídio”, Durkheim (2000, pag 260) expõe que:

[…] quando não temos outro objetivo além de nós mesmos, não podemos escapar à ideia de que nossos esforços estão, afinal, destinados a se perder no nada, pois a ele devemos voltar. Mas a anulação nos apavora. Nessas condições, não conseguimos ter coragem para viver, ou seja, para agir e lutar, uma vez que, de todo esse trabalho que temos, nada irá restar. Em suma, o estado de egoísmo estaria em contradição com a natureza humana[…]

Tal atitude, não se trata somente do reflexo de uma pobre pessoa insatisfeita consigo mesma; mas também de um sentimento maligno e individualista de criar uma sociedade a partir de si mesmo. A “rede social” de cada um, onde sou livre para exercer meu individualismo, onde sou o senhor, adicionando, ignorando, bloqueando, banindo, desfazendo e refazendo a “amizade”…minhas leis…meu perfil, minhas regras.

Não quero me desligar do mundo onde a minha vontade é a lei, onde sou o que queria ser, e não preciso ser o que sou. Continuarei nesse meu mundo, mesmo quando eu estiver dirigindo, atravessando a rua, numa reunião importante no trabalho, mesmo quando jantando com minha esposa ou marido, no velório dos meus pais, ou durante a infância dos meus filhos.

No filme Matrix, quando Cypher faz um acordo com o agente Smith para voltar para a Matrix, suas reivindicações no acordo eram: “Ser famoso, e não se lembrar de como é o mundo real”. Creio que vivemos o mais alto nível de positivismo que se possa atingir. Tão elevado, que o irreal toma o lugar do real, onde não existe lugar para o feio, para o imperfeito; e se caso não seja possível elimina-lo, o feio se torna um “novo bonito”, e o imperfeito se torna original. Criamos uma prisão individual, micro-universos onde somos o criador, legislador e habitante. Entretanto, não conseguimos submeter o tempo (Chronos) aos nossos desígnios. Com isso, as pessoas vão passando, e os relacionamentos definhando, levando consigo a sociedade e a cultura, que por sua vez, arrasta toda a civilização.

No mundo real, as pessoas estão cada vez mais incapazes: de educar filhos, de resolver problemas e conflitos, de suportar pressão, de se especializar em algo, incapazes de ler um livro de mais de cem páginas, etc. Quando a realidade não funciona de acordo com os padrões particulares de cada um, o sentimento de impotência por não conseguirmos esconder quem somos realmente, faz com que fujamos desesperadamente para a “outra realidade”.

Ó humanos, que possamos voltar a ser o que somos; a sermos integrais e encontrar a originalidade nas virtudes e defeitos de cada um. Ir à praia e se deliciar nas ondas do mar mesmo estando acima do peso. Se divertir com os amigos em um karaokê mesmo sendo desafinado. Chorar quando se está triste e dançar quando feliz. Dizer “não sei” e aprender. Chegar em segundo lugar, e se alegrar com o campeão. Sentir estonteante gratidão à Deus por ter filhos, irmãos, esposas e maridos imperfeitos. Essa é minha oração; principalmente por nossas crianças, que órfãs, são forçadas a criar seu próprio “perfil”, seus valores, suas verdades, seu mundo, seu universo.

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